Devido a uma série de atividades que tive nos últimos dias, não tive tempo de escrever sobre este assunto, que admito, é complexo e extenso. Mas o fato é que terminei de ler o livro na terça-feira passada, e resolvi deixar as coisas digerindo um pouco em minha mente, porque muita coisa ficou em minha cabeça depois da última página.
O último volume da trilogia “Fonteiras do Universo” pode ser considerado por muitos como o encerramento de uma das obras mais heréticas de todos os tempos. Ou então, o final (se bem que não é tão final assim) de uma boa história.
Philip Pullman sabe escrever. Não tenho capacidade de dizer o quanto em termos acadêmicos (creio que seja muito, pois é professor de língua inglesa da Universidade de Oxford), mas posso dizer que foi o bastante para me cativar. Só houve uma obra que eu havia lido com tanta “fome” quanto A Luneta Âmbar: O Senhor dos Anéis.
A história começa com Lyra sendo raptada por sua mãe, que a mantém adormecida por uma poção. Em seu sono, ela sonha com seu amigo morto no primeiro livro. Ele está no mundo dos mortos, aonde ela deseja ir para falar com ele e pedir perdão.
Após inúmeras batalhas Will consegue resgatá-la com a ajuda da Faca Sutil, mas a faca se quebra quando tenta cortar uma abertura e ao mesmo tempo pensa em algo que ama mas que o deixa triste: sua mãe. Porém, com a ajuda do urso de armadura, Iorek, eles conseguem reforjá-la. E então parte para o mundo dos mortos, que era um mundo como outro qualquer por onde eles haviam ido com a faca, mas ao mesmo tempo, diferente.
Começa ai a parte mais herética da história, aonde se vê que A Autoridade aprisionava na escuridão as almas de todos os mortos, sejam eles bons ou ruins. Elas eram guardadas por Harpias repugnantes que odiavam a mentira e se alimentavam do mal das almas que ali estavam, e para isso, quando a pessoa dormia elas iam até ela sussurrar em seu ouvido todas as coisas ruins que a pessoa havia feito em vida, a ponto de ela se odiar e ter nojo de si mesma.
No fim, a missão de Lyra e Will neste mundo foi a de criar uma passagem para as almas irem para um mundo físico novamente, e assim como seus dimons (todos tinham dimons, mesmo que ocultos em seus corações), de desintegrariam no ar, e todos os átomos de seu ser misturariam ao Universo, e eles viveriam eternamente na chuva, nos pássaros, nos rios e nos animais. Esta era “a morte da morte” a qual seu pai, lorde Asriel, havia falado no fim do primeiro livro.
Daí para frente entra-se em uma espiral de acontecimentos que deixariam qualquer sacerdote cristão de cabelos em pé. Começamos com o início: A Autoridade nada mais era do que a primeira matéria a tomar consciência de si mesma, e todos os demais que vieram depois dele ele nomeou anjos, lhes dizendo que ele os havia criado. O Criador, que teria criado o Universo, bem... deste ninguém sabia. Nem mesma a autoridade. Uma visão ateísta de certa forma.
A rebelião nos céus ocorreu porque o anjo que o mundo chamou de Lúcifer era, na verdade, bom! Ele queria que as pessoas tivesse conhecimento e inteligência, enquanto que a Autoridade queria manter toda a matéria mergulhada na inconsciência. Ou seja: uma inversão de idéias comparada ao cristianismo. Fora a figura de Metatron, O Regente, a quem a Autoridade havia instituído em seu lugar. No fim, A Autoridade se deixa desintegrar, e o Regente é morto por Lorde Azriel e a Sra. Colter, pai e mãe de Lyra, que o fazem por amor à filha (afinal Metatron temia Lyra pela tentação que ela teria, e queria matá-la).
O assunto geral do livro é muito complexo, como falei. Mas resume-se à idéia de que Lyra sofreria a mesma tentação que Eva, e que sua decisão iria influenciar o Universo da mesma forma. A tentação foi feita pela Serpente, que era a cientista que Lyra havia conhecido em nosso mundo quando veio até aqui no segundo livro. Esta cientista havia sido freira, e a “tentação” em si foi ela contar a ela e Will sobre como ela havia deixado de ser freira. Ela explicou como havia se apaixonado por um homem, e no que isso significava, e em todas as coisas maravilhosas que o amor era capaz de proporcionar a uma pessoa, e em como ele fazia com que a vida ganhasse um significado verdadeiramente especial.
Assim, Lyra e Will, que já demonstravam possuir uma afeição grande um para com o outro, se bem que de maneiras velada, terminam por dar vazão a seus sentimentos. E ambos se beijam, se abraçam, se declaram apaixonados, e ficam juntos. Isso por si mesmo foi capaz de resolver o problema no qual o Universo estava mergulhado e explicava o significado do Pó, que intrigava a todos desde o primeiro livro: a capacidade de pensar, tomar decisões e... amar!
No fim, e se você não leu o livro e não quiser saber, que não leia o seguinte: Lyra e Will são separados. Descobre-se que o Pó, que era o que permitia a todos serem conscientes, estava sendo tragado pelo abismo e pelos espectros criados pela Faca Sutil cada vez que ela criava uma passagem entre as dimensões. Como uma pessoa não podia viver com saúde por muito tempo em um mundo diferente daquele em que nasceu, vê-se uma das separações mais dolorosas das quais eu já tenha tomado conhecimento na literatura. Eles tinham que fechar todas as passagens entre os diversos mundos (e isso os anjos rebeldes fariam), e a faca deveria ser quebrada para selar qualquer chance de que o vazamento do Pó ocorresse novamente, colocando todos os Universos em perigo novamente.
A moral da história é que o corpo físico é tão importante quanto o espirito (no caso, os dimons) e a alma (nossa essência). Todas as experiências físicas que temos de dor e prazer são tão válidas e tem um propósito tão importante quanto aquelas no plano espiritual. Afinal, para que seriamos capazes de sentir estas coisas e experimentar estas sensações se elas não fossem importantes? Eu ainda me perguntava sobre isso, e então me lembrei do que o apóstolo Paulo disse: “Posso todas as coisas, mas nem tudo me convém”.
Uma vez separados e em seus mundos, Will quebra a faca, e com a cientista, cria uma amizade que lhe permitiria resolver os problemas que tinha com sua mãe doente. Ele e Lyra se amavam e estavam mergulhados em uma grande dor. Sabiam que nunca mais se veriam e que só teriam lembranças um do outro. E marcam de irem uma vez por ano no mesmo lugar (que havia em seus dois mundos) no mesmo horário, e fingirem que estavam juntos por uma hora. Não sei você, mas eu achei isso muito triste e bonito.
A história termina, mas para mim, não de uma maneira cabal. Ficaram abertas certas brechas que permitiriam uma possível continuação. Que se houver algum dia, eu e muitos leitores esperam que seja para permitir que Will e Lyra fiquem juntos definitivamente.
A história é herética sim. Mas não fosse por isso, seria uma história maravilhosa e, de certa maneira, impecável. Por mais que eu tenha entendido que a crítica final é à instituição IGREJA (devido a todas as falhas e desgraças que ela causou no decorrer da história humana) e não ao Deus criador (que o escritor deixa claro em sua história que “ele não sabe se existe ou não, e se existe, ninguém sabe dele”), muita gente o condena. Eu não os critico, pois compreendo o quão fundo este homem enterrou o punhal nas fundações da igreja. Porém, digo que achei os livros muito bons.
Por fim, sobre o nome dos dimons...
Semana passada estava andando pela livraria Cultura, do Shopping Iguatemi. Calhei de entrar na parte de dicionários, e a Cris olhou para um exemplar de um Dicionário de Símbolos. Livro muito interessante, quero comprar um em breve! Mas voltando ao assunto...
Peguei o livro em mãos, e com mais de 700 páginas, era muito detalhado em explicar o significado de diversas simbologias distintas. Imagine só você que, totalmente sem querem, eu me deparei com a palavra “dimon”.
Esta palavra é de origem grega, e de fato originou a palavra em inglês “deamon” e em português “demônio”. Sabe a explicação que é dada para a origem desta palavra no grego? Não me lembro exatamente das palavras, mas a idéia é: o dimon é o gênio pessoal do ser humano, o homem interior, a essência de uma pessoa e seu verdadeiro eu. É sua consciência, é o Ego racional divino. É o homem natural, com suas paixões e instintos, suas virtudes e defeitos, que à luz dele não são bons nem ruins, mas são apenas o que deviam ser. Philip Pullman sabia disso com toda certeza, e eis ai o motivo do nome dos dimons.
Fico pensando se o termo “demônio” não foi cunhado assim para tentar colocar a culpa de nossas ações não muito honradas em um ser externo, que nos tenta, que nos direciona ao mal. Uma terminologia para o homem que somos e que de certa forma nunca deixaremos de ser, mas que insistimos em renegar.
Não digo que não exista uma guerra espiritual no mundo e que não existam anjos caídos. Eu sei que eles existem e que o inimigo é ardiloso e esperto. Mas sabendo sobre este termo agora, remete-se a aquela idéia de que somos seres muito mais complexos do que as pessoas tentam determinar nas igrejas ou faculdades, e que somos capazes de ações de bem ou mal extremos, sem nenhuma influência de Deus ou do Diabo. O bem por si mesmo não lhe trás a salvação, e o mesmo eu creio que se possa falar do mal e da condenação à morte eterna.
As pessoas podem ser salvas por Cristo e ainda assim cometer certos pecados (mal) dos quais não consegue escapar porque são aqueles maus que estão inerentes à natureza humana, que são o que são. Da mesma maneira que um ateu pode ser capaz de atos de bondade extrema.
3 comentários:
Andando por ai, achei seu blog.
Você escreve muitíssimo bem, com o coração...
Fico feliz de saber que ainda pessoas que pensem e ajam como vc! :)
Um grande abraço!
Obrigado Felipe. Mas sei lá... acho que minha forma de pensar sobre a maioria das coisas da vida não é nada popular.
Popular com certeza, não. Pensar realmente sobre o sentido das coisas pode ser uma coisa rara. Essa é uma das mensagens que eu entendi do livro, na questão de ver e ter o pó, não só como uma manifestação do amor, mas principalmente como uma característica das pessoas que na adolescência e pré-adolescência começam a ter consciência da própria existência, da existência de um mundo, e começam a pensar sobre isso tudo, tomar consciência da vida.
Quanto ao final, concordo com você, foi muito romântico, mas extremamente triste, (o que me decepcionou um pouco, não gosto de finais tristes :~). Mas eu também acredito numa continuidade dessa história, quando Lyra aprender novamente a usar o aletiômetro, vai descobrir uma resposta, já que o próprio anjo Xaphania revela aos dois que existe um outro meio de atravessar mundos, usando o que chamamos de 'imaginação' (pelo menos, é isso o que eu penso).
Achei o significado da palavra dimon muito interessante, principalmente sua relação com a palavra 'demônio' (não tinha entendido quando vi pela primeira vez a tradução do inglês 'daemon'). Mas o que ainda me intriga é o significado dos nomes dos dimons de Will e Lyra. Quando li a primeira página da Bússola de Ouro achei bem estranho: Pantalaimon, Dimon, me lembrou muito digimon e pokemon, até mesmo por serem parecidos com 'animais' ou 'mascotes' (era o que eu pensava quando começei a ler). Mas agora penso que o nome de Pan também deve ter um significado. E me intriga o significado do nome Kirjava, que a feiticeira não revelou qual era, apesar do dimon perguntar-lhe.
Terminei de ler o livro semana passada, estava procurando alguns comentários sobre ele, e li o seu texto, realmente, gostei muito, muito bem escrito e bem fundado!
Tive que comentar. Me ajudou a entender e perceber alguns detalhes na parte sobre a Autoridade/Criador/início do mundo, a parte herética da história.
Confesso que me esforcei para escrever um bom texto também x), obrigada por ler. ;*
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