A professora chega apressada para mais um dia de aula na escola pública aonde leciona todas as tardes. Nas manhãs, leciona em um colégio particular para complementar sua renda, assim como muitos de seus colegas.
Ela estava tão cansada desta rotina esmagadora que, prestes a entrar na escola, sente seu corpo gelar ao mesmo tempo que uma forte tontura arrebata seu equilíbrio: sua pressão estava em queda livre, e sem para-quedas. Muito mais por motivos emocionais do fisiológicos.
Do lado de dentro da escola a realidade que ela vivia estava alheia a sua condição debilitada. O lugar continuava repleto de crianças extremamente mal-educadas, que gritavam o tempo todo simplesmente para irritar uns aos outros. Vários alunos faziam isso inclusive durante as aulas, invadindo outras classes para gritar e bagunçar, irritando mais ainda outras crianças, que também começam a gritar e espernear, em um ciclo aparentemente sem fim que nenhum inspetor ou professor parecia capaz de quebrar.
Muitos dos pais destas crianças, no máximo, fingiam se importar de fato com seus filhos, tirando a autoridade de professores e não procurando entender e resolver a situação. Por mais doentio que possa parecer, eles acreditam que tal comportamento de seus filhos é aceitável, ou então até discordam, mas não fazem absolutamente nada para mudar seus filhos julgando que isto é de responsabilidade da escola e dos professores; não deles. Afinal, eles apenas colocaram a criança no mundo, o que já é muito!
Em reuniões na escola, muitos destes mesmos pais demonstram um descaso debochado para com aqueles que, em suas mentes tão rasas quanto a de seus próprios filhos, acreditam se tratar de robôs sem sentimento algum, com a obrigação enfiar na cabeça de seus filhos não só conhecimentos e ferramentas mentais, mas também aquilo que a família tem como dever fundamental em sua instituição desde o início dos tempos: bons modos, respeito, disciplina, honestidade, responsabilidade e mais uma lista enorme de valores e virtudes.
A professora, veja só você, já havia se arrastado até a sala dos professores, deitando-se no chão para que sua pressão voltasse ao normal (já que não havia um sofá sequer no local). O diretor, ao vê-la daquela forma, julga-a folgada e espaçosa, e antes de mais nada, lhe dá uma bronca enorme sem nem ao menos se preocupar em saber o que estava acontecendo. A professora, nervosa e esgotada, desmaia.
No desmaio ela viaja em sua mente por aquela realidade cinza, triste e aflita que a cercava. Ao contrário de uma lista de virtudes e valores, ela via nos alunos daquela escola uma listagem de desvios de comportamento e conduta. Em seu delírio, sua mente visualizava aquelas pobres crianças como sementes de monstros. Não em todos, é verdade. Mas infelizmente, a grande maioria.
Sua mente ainda resgatou uma lembrança em tons de sépia (como toda memória triste e melancólica). Um aluno, ao ser solicitado que retirasse seu boné dentro da escola, agrediu com socos uma inspetora, que ao se defender foi processada, já que não poderia reagir de maneira alguma, mesmo para assegurar sua própria integridade física.
Lembrou também de muitas das ocasiões aonde viu alguns de seus alunos pré-adolescentes vendendo drogas dentro da escola para outros colegas, enquanto outros praticavam pequenos furtos e roubos. Estudavam para, no futuro, serem bandidos melhores.
Ao despertar, a professora se viu cercada por seus colegas e pelo diretor. Alguns a olhavam preocupados com seu bem-estar, outros a fitavam com olhos acusadores e de deboche. Refletindo, a professora sabia que em um ambiente como aquele não eram apenas os alunos que possuíam falhas de caráter. Alguns de seus colegas, não a maioria, mas uma quantidade infelizmente considerável, não passam de canalhas.
Em um jogo político que tinha como objetivo migalhas de egoísmo, enturmavam-se para prejudicar aqueles que não lhes agradavam, mantendo uma aura de poder desprezível que, por fim, só massageava seus egos doentios. Da mesma forma o diretor, em troca de favores de natureza diversa, beneficiava certas professoras, montando horários de maneira a beneficiar seus protegidos, dando-lhes também maior tolerância a atrasos dentre outras coisas.
A professora estava paralisada diante daquela situação medonha. Vinha tendo sessões regulares com psicólogos a fim de resolver consigo mesma aquele enorme dilema. Mas algo dentro dela havia despertado. Mais precisamente, uma constatação que ela mesma vinha se negando há tempos.
“A escola pública morreu” pensou ela. “Não só morreu, como foi assassinada”. Ano após ano, dia após dia, foi envenenada aos poucos, perdendo gradativamente as forças, a saúde e a disposição, até que ficou em um leito de hospital de onde todos já sabiam que ela nunca mais iria se levantar. “A escola pública morreu envenenada pelo descaso, pela hipocrisia e pela sede de poder... de uma maneira bem simplista, o mal ganhou do bem, o vilão derrotou o herói e o país comprou uma passagem só de ida rumo ao caos”.
Desde muito tempo atrás inúmeros governos que sucederam-se no poder foram dando à educação um papel eleitoral em duplo sentido. Se por um lado era bonito dizer-se preocupado com a educação das crianças e adolescentes, por outro era extremamente importante a médio e longo prazo manter a maioria da população imersa em um estado de ignorância letárgica, para que com isso fossem facilmente manipuláveis, de forma a permitirem que as mesmas pessoas ficassem no poder. Ou seja, traçaram o plano perfeito para transformar o povo em gado intelectual.
Tal gado é o que se vê hoje vagando pelas periferias e se empilhando nas escolas públicas. Na verdade, um gigantesco exército de seres humanos que não sabem mais o que significa afinal esta história de “ser humano”. Pessoas sem instrução e flexibilidade intelectual, que criam seus filhos sem dar importância ao seu futuro, condenando-os ao mesmo destino triste que tiveram, sem a capacidade de enxergar um palmo diante do nariz. Mesmo porque, como estes pais não tiveram acesso à educação, não conhecem sua utilidade na vida. Pensam que, já que não tiveram aquilo e deram um jeito de sobreviver, seus filhos não estão perdendo nada, afinal.
Para eles, basta viver de forma a atender aquelas expectativas mínimas que lhes foram enfiadas na cabeça desde que se entendem por gente: trabalhar com qualquer coisinha e ganhar pouco, mas ver o jogo do seu time na TV e nos finais de semana fazer um churrasquinho de gato com cerveja. A única coisa que lhes foi permitido aprender é a se contentarem com pouco achando que é muito.
A geração atual de alunos nas escolas públicas é a primeira que é filha de uma geração inteira que, sistematicamente, foi mantida nas trevas sem instrução alguma ou, quando muito, sem qualidade. Antes deles é claro que haviam muitas pessoas que não tinham instrução. Mas, se por um lado a escola era falha, a família não era. A destruição do núcleo familiar sempre foi o estágio final da degradação de um povo, reflexo direto de séculos de descaso com a educação dos integrantes de uma sociedade.
Sem uma família ajustada e com valores para ensinar aos seus integrantes, as crianças de cada nova geração nada mais serão do que monstros mais aperfeiçoados. Não porque tem culpa, mas porque são muito afetadas pelo meio-ambiente aonde se encontram inseridas. Justamente porque não tem um lar que lhes mostre a distinção entre o certo e o errado. E como o errado sempre é mais sedutor que o certo, e como o mal sempre é mais tentador que o bem, e como as crianças e as pessoas sem discernimento sempre são mais influenciáveis e tendem aos atalhos perigosos da vida (afinal no Brasil o que manda é o "jeitinho" e a vantagem pessoal), nada mais é necessário para que as engrenagens do caos girem de maneira macia e eficaz.
A professora ainda está na sala dos professores, com tonturas. Os demais colegas foram dar suas aulas, e o diretor já havia chamado um substituto para ela naquele dia. Esperando melhorar para ir a um pronto-socorro (já que ninguém ali estava disposto a levá-la), ela não consegue parar de pensar sobre todas aquelas coisas horríveis que sua mente refletira.
Ela se recordou das vezes em que, durante uma atividade qualquer, foi fazer um simples carinho na cabeça de algum aluno, e o mesmo recuou, imaginando que ela lhe daria uma pancada. Lembrou-se também de quando tocou o braço de um aluno em sinal de carinho, e o mesmo a afastou, dizendo que não queria e nem gostava de ser tocado. “Nem mesmo afeto eles são capazes de dar ou receber” pensou ela. Aquelas crianças não possuíam mais nenhuma sensibilidade e por dentro eram secos como um deserto, secos como o mar que virou sertão.
Apunhalada por um vazio de enorme tristeza, a professora teve, sozinha na sala dos professores, uma crise de choro. Dentro dela, uma triste certeza se concretizava e uma decisão era tomada. A escola pública foi morta, e com ela, o ânimo de muitos professores genuínos. Não meras pessoas que lecionam por falta de opção. Mas sim professores por vocação, verdadeiros mestres como aquela professora, que tinha no magistério sua realização profissional e pessoal, mas que agora se esvaia em tristeza. Em crise já há bastante tempo, com frequentes desmaios e crises de pânico, além de um cansaço que ultrapassava a compreensão física, ela finalmente atingiu a fase da aceitação, por mais triste que fosse.
Uma andorinha só não faz verão, e infelizmente a vida não é como um daqueles filmes bonitos aonde um professor sozinho consegue revolucionar uma escola barra-pesada, catapultando alunos marginalizados pela sociedade para uma vida repleta de oportunidades por meio (veja só você) do ensino!
Durante muito tempo ela repudiou tal idéia, assumindo que tal atitude nada mais era do que egoísmo ou covardia, comparando isso a um soldado que abandonava o campo de batalha no momento mais difícil da guerra. “Mas um soldado solitário sempre é morto pelo inimigo... o Rambo é apenas um personagem, e se fosse real, conhenhamos: ele teria morrido já no primeiro filme”. Seu pai, militar aposentado, sempre lhe dizia isso.
“É melhor lutar outro dia, com mais apoio, encontrar uma brecha nas linhas inimigas e lutar em outra frente de batalha. Recuar, nestes casos, não é covardia e nem falta de honra. É sinal de prudência”. Movida pela paz da decisão e pelas memórias do que seu pai costumava lhe dizer (como disse os pais são fundamentais na educação e carater de qualquer pessoa), mas sem deixar de se sentir estilhaçada em sua alma, ela se levantou e foi embora, para nunca mais voltar a uma escola pública.
Os alunos daquela escola agora teriam um novo professor pelo resto do ano. Um professor que nem esboçava se importar com eles. E infelizmente a maioria dos alunos mal notou que a pessoa ali, bem na frente deles, havia mudado. Eles nunca prestaram atenção naquela pessoa de ar cansado e um toco de giz na mão.
Já aqueles poucos que ansiavam por educação sentiam-se como que levando um balde de água fria em suas cabeças. Por dentro, estavam tão estilhaçados quanto sua ex-professora. Perdiam a vontade de estudar, e começavam a sonhar com churrascos dominicais e uma vida medíocre. Seus sonhos viraram o pó que outros colegas passaram a lhes vender.
Muito se fala sobre a sociedade civil se articular para fazer algo a respeito desta e de muitas outras situações (mesmo que todas as demais tenham sua origem nos problemas da educação). Mas a verdade é que a sociedade civil não tem mais força alguma, e tornou-se prisioneira de si mesma.
O governo público, afinal de contas, não é a organização da sociedade civil? Porque tem-se então a impressão de que a sociedade é uma coisa, e o governo outra? Elegemos representantes para tomar decisões por nós e para nós, para que organizem a sociedade com leis e direitos, garantindo que estas sejam cumpridas por força de suas instituições, com fiscalização e punição.
Em ultima instância o governo vive para nos servir. Porque ele nos trata então como camponeses em um regime monárquico, aonde nós servimos os servidores? Seria normal entrar em um restaurante e passar a atender os garçons?
Somos uma sociedade fundada por ex-escravos que só aprenderam a ser submissos (povo), bandidos (ainda bandidos) e exploradores (governos). Era assim em 1500. Ainda é assim hoje.
Se for para deixar o povo na lama e na escuridão atual, pelo menos a classe dominante poderia ser mais sincera e nos colocar novamente em uma ditadura declarada, arrancando todos nós desta “matrix sócio-política”. Porque a hipocrisia em que vivemos hoje não passa de um simulacro, uma ilusão fraca que dá muitos sinais de sua natureza (quem tem olhos, que veja).
Afinal, o que vivemos desde muito tempo atrás até os dias de hoje não seria uma ditadura branca (não na cor, mas na sutileza)?
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